Wednesday, June 21, 2017

Certas palavras



Existência.
Uma guerra com campos de flores no caminho
ou campo de flor com uma guerra no caminho?

Vi casas de tijolos carcomidos,
bichos magros no quintal
jardins desgrenhados,
gente desfeita e que sorria
com seus dentes descuidados.

Vejo caminhos bem pavimentados,
rotas rápidas para palácios,
grandes animais de tranças simétricas num haras,
vozes límpidas, carregadas com os estrangeirismos robóticos da moda,
todas os últimos trends do momento,
hasteando bandeiras
e mais nada.

Vivi também o contrário,
o inverso equilibrado de mazelas e bênçãos,
como astros mal ou benditos em perfeito alinhamento,
um mundo aleatório ou construído,
seus extremos e todo o espaço misturado entre eles.

Vejo a construção impiedosa, persistente, de uma catedral,
bela e morna e feroz e intensa e claustrofóbica e feliz;
inteira, mesmo que em partes.

Wednesday, June 01, 2016

A Porta



Para alguns
beco sem saída
escuridão plena
o temido (ou nem isso) nada.

Para outros
porta aberta,
só uma passagem
do fato de existir.

Só mais um passo
geralmente indesejado
mas perene, inevitável.

O que vai
para muitos, é só mais um desconhecido.
Para poucos é sempre A pessoa
aquela, única dentre tantas,
e que deveria ficar.

O que fica,
para os que ficam,
é sempre A pessoa,
única, especial dentre tantas
que não deveria partir.

Nossos planos,
nossas linhas no papel.

Sunday, May 22, 2016

Inútil

Acho que o que mais importa na vida não pode ser medido por sua utilidade. A vida em si não é necessariamente útil. A utilidade não é capaz de definir o significado ou o valor de uma determinada existência. 

Medir uma vida por sua utilidade significa colocar pessoas no mesmo patamar de máquinas. Coisas existentes para um determinado propósito. Significa acreditar que nossos "insumos" existenciais poderiam ser resumidos apenas a outras coisas e objetos. Significa transformar nosso tempo em uma corrida desesperada para fazer mais, para ser mais eficientes.

Mas não. Humanos que somos, agraciados (por vezes amaldiçoados) com uma imaginação sem limites, com sentimentos profundos, grandes paixões, não nos basta ser eficientes. Nosso porquê existencial, construído ao longo do tempo, uma obra que nunca é concluída, para ser por vezes satisfatório, implica em mais que isso.

A realização, os momentos felizes, aqueles marcantes por sua força, não são assim por deixarem em nossas mãos mais produtos. O amor despertado, a morte se uma pessoa querida não são sentidos por serem úteis, mas por terem um impacto emocional poderoso. Quando alguém importante morre, o que mais nos falta é a própria pessoa, não sua produção.

Acredito que o capitalismo é o melhor é até mais natural forma de se fazer chegar coisas às pessoas, de se prover objetos, inclusive aqueles relacionados a nossa subsistência. Porém, satisfaz uma instância muito rasa de quem somos.

Não nos basta objetos. Por mais satisfeito que um indivíduo fique com suas coisas, ele nesse momento não é diferente de um cachorro que ganhou um biscoito especial. Por mais que uma coisa apele para nosso lado simbólico, com seus apelos e promessas de diferenciação social, não nos torna muito diferentes.

Dizem que quando alguém morre é como se uma biblioteca se queimasse. Mais que isso, não são os livros queimados, mas é aquela voz de um contador de histórias, sua existência única, sem precedente ou impossibilidade de repetição que se vai.

Não quero ser útil, funcional como um relógio, rápido como um hamster em sua rodinha. Quero ser vivo, ter nos olhos chamas e não códigos binários, alimentar aquele ser que se alegra no cheiro da chuva, no desejo de correr desembestado na grama, que se impressiona com a grandeza de muitos e até com a pequenez de outros tantos.

Até que ela venha. Inevitável. E possamos rir dela.

Tuesday, March 08, 2016

E é

A vida
é bela
é trágica
é grande
é maior ainda
é muda
e cresce
enraiza
e segue.

Friday, March 04, 2016

Livro - Budismo para Leigos



Nascido na Índia e dai se espalhando pela Ásia, chegando ao ocidente no século XX, especialmente no oeste americano, o Budismo, representado para nós por figuras como o Dalai Lama e, para alguns, pelo monge vietnamita Thich Nhat Hanh, ambos laureados pelo Nobel da Paz, atrai curiosos e adeptos de todas as partes do mundo. Seja na figura do mestre zen engraçado ou na famosa tradição da perfeição japonesa, suas ideias e conceitos atraem pessoas muito diferentes, incluindo aparentemente opostos como ateus e religiosos.

De minha parte, o que me atrai no Budismo é o fato de ser uma religião (ou filosofia) bem humorada e viva, muito distante da sisudez e seriedade pregada na maioria das outras, além de aceitar a convivência plena com outras tradições, sem necessidades de autoafirmação e aberta para qualquer pessoa.

Para saber mais sobre o tema, o livro Buddhism for Dummies (traduzido de forma sem graça como Budismo para Leigos) é uma obra surpreendente. Faz parte de uma série que se propõe a explicar um tema desde seus conceitos básicos. Como eu nunca tinha lido nenhuma obra dessa coleção, o que me surpreendeu foi a abrangência do conteúdo, ao mesmo tempo apresentando o básico sobre Budismo mas se aprofundando de forma bem completa em quase tudo sobre o assunto. 

É também um livro muito bem estruturado. Dada a infinidade de conceitos budistas com nomes em sânscrito e pali, as línguas principais dessa tradição, e a impossibilidade de saber a maioria deles, ajuda e muito o caminho lógico que é desenvolvido, iniciando pela origem e principais tradições, conceitos e práticas, depois exemplos de grandes budistas contemporâneos e fechando com perguntas e respostas. Tudo de forma bem arranjada e agradável de ler.

Como interessado em Budismo, eu já havia lido outros materiais e conhecia um pouco o assunto. Porém o livro e um daqueles que abre novas fronteiras e motiva novas buscas. É um bom ponto de partida pra quem quer conhecer mais essa riquíssima tradição ou entender e mesmo praticar o que ela propõe


Friday, February 19, 2016

Dualidade

Pode haver beleza
Em meio ao horror.
Pode haver horror
Em meio à beleza.

Thursday, February 18, 2016

Imagens 2 - Sobre a compaixão

 

Eu nunca o tinha visto chorar. Engraçado que não me lembro de como estava o rosto dele. Era um lamento bem maior, quando se chora com  o corpo, não apenas com os olhos e tudo em nós se torna uma expressão de tristeza. É estranho quando vemos uma de nossas referências dessa forma. 

A partir daí o vi de forma diferente, parece que o entendi melhor, de um jeito mais próximo. E como se a pessoa descesse de um panteão distante e passasse a habitar entre nós.  Entendi também como nos grandes momentos de nossa vida, felizes ou de sofrimento, as palavras nunca são suficientes. 

Certos acontecimentos, marcantes, são grandes demais e habitam o domínio do silêncio, o campo do gesto físico. O desafio de quem escreve é sempre o mesmo: como fazer caber em letras aquilo que é quase inexprimível? E não há como vencer tal desafio. Mais importante que escrever sobre a lua, é olhar para ela. A existência sempre ganha, a vida é maior.

Enquanto eu observava e sentia, também por ser parte daquela família, mal sabia que em alguns anos eu estaria numa situação quase idêntica. Indefeso, me sentindo uma criança, encarando a morte de meu ente mais querido, entendendo, de forma inequívoca e vivencial, a transitoriedade de absolutamente tudo na vida. Foi pra mim "o nada é para sempre" se manifestando pela primeira vez.

Certas imagens nos definem. Além do meu pai, lembro de meu avô também. Havia o caixão pequeno, elevado do chão e ele, alto como era, em um terno preto, sentado numa cadeira, com uma das mãos tocando a borda do esquife. Um gigante por ora vencido. Derrotado pela perda de sua companheira de tantos anos. Se naquele dia senti com ele aquela tristeza, hoje, casado, consigo compreender com clareza o significado daquele momento para ele.

Milan Kundera, em "A Insustentável Leveza do Ser", aponta para uma definição da palavra "compaixão": sentir com, partilhar sentimentos. Creio que essa é a grande tarefa de ser e se tornar humano. A busca do amor real e profundo, não necessariamente romântico, talvez a única forma de se atingir a completude para seres como nós, segundo a psicanálise, definidos pela falta.