Blog pessoal de André Camargos, publicitário por profissão e escritor por hobby. Textos diversos como poemas. crônicas, críticas de livros e sugestões de leitura.
Sunday, September 25, 2005
O Real experimentado
Música era por fim o que ele chamava por vida sua comida e o ar de cada respiração em seu Tao caminho virtuoso Kundalini o desenrolar da Serpente som universal do mundo OM o alpha uno agrupando todas as palavras a seu redor tal qual rede de pesca Oroboro a inauguração do tempo cíclico abandono do paraíso e início da maturidade Sem saber era apontar o olhar para frente sem escuridão pois o ouvido por fim era o tato e a visão que trazia às suas mãos o mundo inteiro e sem palavras Do violino instrumento do grito ou baixo instrumento do sussuro Tudo sempre costumava dizer-lhe alguma coisa No sem-sentido das coisas elas começavam aos poucos se relacionando tal qual homem mulher iam primeiro pelos olhos o toque a fala a palavra proximidade e se fundiam em sexo Diferente do sexo na musica as coisas nao costumam se separar é tudo totalidade um grupo de palavras e atos num nível de experiência não pode ser percebido de outra forma que nao tomando-lhe em uníssono o todo A beleza e o desenvolvimento da visão central self total agrupamento que forma o ser A música é algo orgânico que vive e respira ganha vida a cada nova execução Ouvir música é enxergar a realidade das coisas sem interferência das palavras Ouvir música é estender as mãos e tocar o quente e o frio ao mesmo tempo Ouvir música é sentir o gosto do prato preferido que vem de surpresa
Monday, September 19, 2005
Ficção entre Vizinhos
Dada a escuridao que cobria o mundo naquele momento, tudo parecia deverasmente simples, como se um olho fechado pudesse desfazer o que um suposto criador tinha feito – também daquela falta de luz primordial. Abriu os olhos, e seu mundo foi feito naquele exato momento, seria o começo de tudo, uma nova vida, diferente de qualquer fantasma de antigamente, de qualquer memória dolorosa, guardada num túmulo, à não só sete palmos de distância, mas sete léguas para dentro da terra, ou sete chaves trancando as correntes.
Abriu a porta da rua decido, dali para adiante, tudo em sua vida seria resolvido de uma forma simples. Olharia sim para a vizinha e em seu sorriso radiante mostraria que ela, Joana, para ele, era o primeiro dia de sol, era como andar sozinho no meio da rua, na contramão, sem carros, na companhia de nada mais que um bando de árvores e suas folhas depositadas no chão. Mas não foi dessa vez, Joana não desceu pelo elevador e não o encontrou na garagem, como fazia todos os dias. De amanhã não passará, pensou o nobre e silencioso Antônio. Uma das fechaduras, ou a distância de sete léguas foi percorrida naquele segundo. O pensamento se perdeu nos cálculos, na velocidade física necessária para percorrer tantas léguas num único segundo.
Pip. Pip. Ouviu o carro apitando e viu sua mão pressionando o pequeno botão esquerdo do controle retangular, com bordas circulares. O que comandava sua mão não era o pensamento, era algo maior, o hábito diário. Pensou por uns segundos se não era apenas um conjunto de hábitos, acumulados ano após ano, talvez momento após momento, talvez naquele exato instante, quando percebeu que não apertara o botão de sempre do controle, o esquerdo. Não, talvez aquilo fosse uma nova manifestação de sua recém descoberta individualidade.
Quando se sentou no assento de pelica de seu carro velho, e sentiu a porta fechando novamente por um comando do cotidiano e todo seu peso etéreo, gostou, como sempre, de ouvir o barulho que, pelo menos por alguns momentos, o lacrava isolado do mundo. Ver as ruas através das janelas limpas era como assistir a um vídeo pornô, a imagem tinha tanta nitidez que parecia real, mas a realidade, por trás de uma tela era mais segura que a realidade em si, era a segurança e a fé da formiga que se imagina ascendendo aos céus, sem perceber que abaixo dela se encontra um vidro, que de tão transparente parece não existir. Talvez fossem em mais números os vidros que envolviam a ele naquela hora do dia.
O poder de um dedo era algo impressionante. Se um sozinho era a chave para a sobrevivência humana, dois, unidos, tinham poderes inimagináveis. Antônio imaginou-se virando a chave que ligava uma bomba atômica com a força de mil sóis, e a resposta do carro foi a explosão de tudo – imaginou um míssil caindo sobre o prédio, explodindo principalmente o apartamento do décimo-segundo andar, no qual se encontrava, sempre dormindo, sua mulher, seus filhos inúteis e sua sogra recém lipo-aspirada. Quando engatou a ré, posicionando o carro de frente para o portão eletrônico, era um sorriso o que naquele momento decorava seu rosto.
Envolvido pelo som monótono e mecânico de um motor envelhecido de portão, a rua se revelava, lentamente, como se um imenso obstáculo se arrastasse lentamente e deixasse o caminho livre, o que deveria ser a grande metáfora da vida. Uma imensa porta se abrindo, uma série de obstáculos se retirando do caminho, para dar passagem a uma nobre autoridade. Ah, se ainda vivesse no tempo dos Reis! Seria ótimo, com uma única condição, que ele Antônio de Marques fosse um dos escolhidos para viver acima de qualquer nobreza, como único e superior mandatário. Mas voltou a sua condição de plebeu imediatamente após ouvir algo que o acordou: o som da madeira rangendo, se abrindo, da porta do elevador, empurrada pela mão alva mas firme de uma jovem, enquanto o pé, aquela parte do corpo que odiava, mas que para ela caia tão bem, envolvido por uma sandália, apontaria e tocaria o chão coberto de rosas, dando vistas para os maravilhosos dedinhos, e acima deles, surgindo aleatoriamente pela fenda da grande saia, pernas e coxas, movidas acima pela linha da cintura, a barriga levemente sobressaltada - pois a imperfeição era, para as mulheres, o que as tornava em alguns instantes perfeitas – e sobre eles os seios, que não imaginava, pois pertenciam ao universo cego do tato, depois o pescoço e o sinuoso encaixe com a caixa toráxica, o que mais gostava nela e acima seu rosto, seus olhos aleatórios, pois a cada dia era uma surpresa, tristonhos, alegres, lascivos, tranqüilos, ressaqueados – tantos olhos que não parecia caber numa só pessoa – e que hoje apontavam para baixo, talvez para contemplar os lábios, esses sim, infinitamente belos e pequenos, destacados por um discreto brilho. Gostava especialmente de seu cabelo curto, que, de forma alguma lhe dava um aspecto andrógino, pelo contrário, ressaltava toda uma feminilidade e o que parecia uma imensa sabedoria de não se enconder por trás de cabelos longos, ou de máscaras de maquiagens. Como tanta simplicidade poderia despertar tanto desejo, e, por sua vez, tanta angústia, pois assim Antônio parecia constantemente se relacionar com o mundo. Cada passo, cada toque no chão era uma badalada enquanto ele, o pobre, se encontrava preso na sala do sino, em penitência – a alegria de um pássaro amarelo que, trancado, só pode tremer diante das antigas experiências mal resolvidas, por não reconhecer o que é ser feliz, que a felicidade é a promessa de que novos dias azuis seguirão as noites tristes e chuvosas, bastando que, para isso, se encare o momento, que é todo o medo.
Enquanto ele torcia para que o portão se abrisse a tempo de não vê-la, pois não ser capaz de cumprir suas próprias expectativas como o novo homem seria algo terrível, o mundo e o tempo conspirava para sua felicidade, e o portão simplesmente parou e voltou, se fechando. Toc. Toc. Toc. Antes de se dar conta, Antônio já sorria para a janela do passageiro, lá onde ela tocava o vidro, fazendo um leve barulho com a ponta dos dedos, e ele abriu a janela e ela, com um sorriso discreto, dourado pela luz de um sol que magicamente parecia ter surgido acima dos dois, pediu carona, pois sabia que ele, Antônio, trabalhava próximo dela e que saiam sempre no mesmo horário, e que – já dentro do carro – se sentia encabulada demais para pedir isso a ele antes.
Abriu a porta da rua decido, dali para adiante, tudo em sua vida seria resolvido de uma forma simples. Olharia sim para a vizinha e em seu sorriso radiante mostraria que ela, Joana, para ele, era o primeiro dia de sol, era como andar sozinho no meio da rua, na contramão, sem carros, na companhia de nada mais que um bando de árvores e suas folhas depositadas no chão. Mas não foi dessa vez, Joana não desceu pelo elevador e não o encontrou na garagem, como fazia todos os dias. De amanhã não passará, pensou o nobre e silencioso Antônio. Uma das fechaduras, ou a distância de sete léguas foi percorrida naquele segundo. O pensamento se perdeu nos cálculos, na velocidade física necessária para percorrer tantas léguas num único segundo.
Pip. Pip. Ouviu o carro apitando e viu sua mão pressionando o pequeno botão esquerdo do controle retangular, com bordas circulares. O que comandava sua mão não era o pensamento, era algo maior, o hábito diário. Pensou por uns segundos se não era apenas um conjunto de hábitos, acumulados ano após ano, talvez momento após momento, talvez naquele exato instante, quando percebeu que não apertara o botão de sempre do controle, o esquerdo. Não, talvez aquilo fosse uma nova manifestação de sua recém descoberta individualidade.
Quando se sentou no assento de pelica de seu carro velho, e sentiu a porta fechando novamente por um comando do cotidiano e todo seu peso etéreo, gostou, como sempre, de ouvir o barulho que, pelo menos por alguns momentos, o lacrava isolado do mundo. Ver as ruas através das janelas limpas era como assistir a um vídeo pornô, a imagem tinha tanta nitidez que parecia real, mas a realidade, por trás de uma tela era mais segura que a realidade em si, era a segurança e a fé da formiga que se imagina ascendendo aos céus, sem perceber que abaixo dela se encontra um vidro, que de tão transparente parece não existir. Talvez fossem em mais números os vidros que envolviam a ele naquela hora do dia.
O poder de um dedo era algo impressionante. Se um sozinho era a chave para a sobrevivência humana, dois, unidos, tinham poderes inimagináveis. Antônio imaginou-se virando a chave que ligava uma bomba atômica com a força de mil sóis, e a resposta do carro foi a explosão de tudo – imaginou um míssil caindo sobre o prédio, explodindo principalmente o apartamento do décimo-segundo andar, no qual se encontrava, sempre dormindo, sua mulher, seus filhos inúteis e sua sogra recém lipo-aspirada. Quando engatou a ré, posicionando o carro de frente para o portão eletrônico, era um sorriso o que naquele momento decorava seu rosto.
Envolvido pelo som monótono e mecânico de um motor envelhecido de portão, a rua se revelava, lentamente, como se um imenso obstáculo se arrastasse lentamente e deixasse o caminho livre, o que deveria ser a grande metáfora da vida. Uma imensa porta se abrindo, uma série de obstáculos se retirando do caminho, para dar passagem a uma nobre autoridade. Ah, se ainda vivesse no tempo dos Reis! Seria ótimo, com uma única condição, que ele Antônio de Marques fosse um dos escolhidos para viver acima de qualquer nobreza, como único e superior mandatário. Mas voltou a sua condição de plebeu imediatamente após ouvir algo que o acordou: o som da madeira rangendo, se abrindo, da porta do elevador, empurrada pela mão alva mas firme de uma jovem, enquanto o pé, aquela parte do corpo que odiava, mas que para ela caia tão bem, envolvido por uma sandália, apontaria e tocaria o chão coberto de rosas, dando vistas para os maravilhosos dedinhos, e acima deles, surgindo aleatoriamente pela fenda da grande saia, pernas e coxas, movidas acima pela linha da cintura, a barriga levemente sobressaltada - pois a imperfeição era, para as mulheres, o que as tornava em alguns instantes perfeitas – e sobre eles os seios, que não imaginava, pois pertenciam ao universo cego do tato, depois o pescoço e o sinuoso encaixe com a caixa toráxica, o que mais gostava nela e acima seu rosto, seus olhos aleatórios, pois a cada dia era uma surpresa, tristonhos, alegres, lascivos, tranqüilos, ressaqueados – tantos olhos que não parecia caber numa só pessoa – e que hoje apontavam para baixo, talvez para contemplar os lábios, esses sim, infinitamente belos e pequenos, destacados por um discreto brilho. Gostava especialmente de seu cabelo curto, que, de forma alguma lhe dava um aspecto andrógino, pelo contrário, ressaltava toda uma feminilidade e o que parecia uma imensa sabedoria de não se enconder por trás de cabelos longos, ou de máscaras de maquiagens. Como tanta simplicidade poderia despertar tanto desejo, e, por sua vez, tanta angústia, pois assim Antônio parecia constantemente se relacionar com o mundo. Cada passo, cada toque no chão era uma badalada enquanto ele, o pobre, se encontrava preso na sala do sino, em penitência – a alegria de um pássaro amarelo que, trancado, só pode tremer diante das antigas experiências mal resolvidas, por não reconhecer o que é ser feliz, que a felicidade é a promessa de que novos dias azuis seguirão as noites tristes e chuvosas, bastando que, para isso, se encare o momento, que é todo o medo.
Enquanto ele torcia para que o portão se abrisse a tempo de não vê-la, pois não ser capaz de cumprir suas próprias expectativas como o novo homem seria algo terrível, o mundo e o tempo conspirava para sua felicidade, e o portão simplesmente parou e voltou, se fechando. Toc. Toc. Toc. Antes de se dar conta, Antônio já sorria para a janela do passageiro, lá onde ela tocava o vidro, fazendo um leve barulho com a ponta dos dedos, e ele abriu a janela e ela, com um sorriso discreto, dourado pela luz de um sol que magicamente parecia ter surgido acima dos dois, pediu carona, pois sabia que ele, Antônio, trabalhava próximo dela e que saiam sempre no mesmo horário, e que – já dentro do carro – se sentia encabulada demais para pedir isso a ele antes.
Sunday, September 18, 2005
O Morto II
Ainda meio grogue, levantei do chão, apoiando a mão esquerda no banco verde da praça. Limpei a poeira que se depositava em minha roupa e estava pronto para outra. De pé, olhei para frente. Ele estava de costas para mim, caminhando em seu terno bem cortado. Gargalhei, gritando "Ei!!! Olha pra trás..." Quando ele se virou, recebeu a coronhada no nariz e caiu no chão. "Esqueceu o revólver..." disse novamente e com um novo golpe, ele rolou no chão. O terno não estava mais tão bonito como antes. Olhei para o chão, ele tinha agora o rosto vermelho de sangue e eu também. Me ajoelhei e cuspi avermelhado. Tinha esquecido. Nos levantamos, prontos para um ataque cara a cara. Um tiro em troca de uma coronhada. O inconsciente fazia com que a troca fosse justa. Enquanto avançávamos, como deuses do Valhalla, incitados pelo prazer da guerra e morte, ouvimos uma terceira voz: "Parem. Agora." E era o desejo incondicional e sem resistência de um garoto. 10 anos devia ter, no máximo. Parado, sozinho, ele nos olhava, com certa raiva despertada. Encontravam-se o Vendedor, o Artista e o Garoto. O entendimento se fazia completo, sem mais nenhuma palavra.
À frente, na avenida, virando a esquina, um tanque de guerra, acompanhado de soldados. O volume do mundo se agigantava e o Garoto perguntou, se escondendo atrás do banco: "Por quem vocês vão lutar agora?"
O Vendedor e o Artista de reuniram, apertando mãos e correram para a frente. Rápido como um pensamento, desarmaram um dos guardas, transformando os outros em poeira. O tanque, com um desejo, foi cingido por um raio.
Thor e Loki. Apolo e Dioniso. Melkor e Manwë. Deus e Lúcifer.
Thursday, September 15, 2005
Ancour
As quatro da manhã morria de um ataque cardíaco fulminante o pintor Dominique Ancour. Além de seus dedos carcomidos pela tinta e sua barba eternamente por fazer, imortalizada nas caricaturas e numa grande homenagem imóvel, posta na praça dos Quinze, Dominique levava para a tumba o maior segredo de sua arte.
Já havia muitos anos que acadêmicos e membros da plebe debatiam por um sem fim de tempo o que era sem dúvida o maior segredo de Ancour. O que começara em uma simples percepção de um observador na galeria, tinha se transformado em teses que transformaram mestres em doutores, não só em história da arte, mas para na psicologia, filosofia e ciência política. Dominique fora descarnado, desconstruído e reerguido por diversas vezes, num encontro de porquês dos mais variados matizes.
Mas quem tinha a resposta final? Para os historiadores, via-se a inovação da dinâmica surgida da multiplicidade de perspectivas e potencialidades entre o apolíneo e o dionisíaco, numa perspectiva amoral. Enquanto que os cientistas políticos viam a síntese monádica da inexistência de fronteiras que outrora definiam a polaridade de um mundo. Os psicólogos viam obviamente um trauma, e a arte como sintoma da mente de um novo homem, que para os filósofos Nietszcheanos era a viva encarnação do Zaratustra.
O mais curioso é que o tal fenômeno acadêmico atingira, como nem Dali o tinha feito antes, a sociedade dos homens comuns. Era algo estudado então pelos sociólogos, pois Dominique Ancour levara a grande arte novamente ao mundo. Das criptas e sarcófagos dos intelectuais, do prazer auto-erótico da teoria, surgia algo capaz de atiçar a curiosidade dos leitores e homens comuns.
Ancour morreu sem dar resposta à grande pergunta de sua vida: o quadro estava ou não de cabeça para baixo?
Já havia muitos anos que acadêmicos e membros da plebe debatiam por um sem fim de tempo o que era sem dúvida o maior segredo de Ancour. O que começara em uma simples percepção de um observador na galeria, tinha se transformado em teses que transformaram mestres em doutores, não só em história da arte, mas para na psicologia, filosofia e ciência política. Dominique fora descarnado, desconstruído e reerguido por diversas vezes, num encontro de porquês dos mais variados matizes.
Mas quem tinha a resposta final? Para os historiadores, via-se a inovação da dinâmica surgida da multiplicidade de perspectivas e potencialidades entre o apolíneo e o dionisíaco, numa perspectiva amoral. Enquanto que os cientistas políticos viam a síntese monádica da inexistência de fronteiras que outrora definiam a polaridade de um mundo. Os psicólogos viam obviamente um trauma, e a arte como sintoma da mente de um novo homem, que para os filósofos Nietszcheanos era a viva encarnação do Zaratustra.
O mais curioso é que o tal fenômeno acadêmico atingira, como nem Dali o tinha feito antes, a sociedade dos homens comuns. Era algo estudado então pelos sociólogos, pois Dominique Ancour levara a grande arte novamente ao mundo. Das criptas e sarcófagos dos intelectuais, do prazer auto-erótico da teoria, surgia algo capaz de atiçar a curiosidade dos leitores e homens comuns.
Ancour morreu sem dar resposta à grande pergunta de sua vida: o quadro estava ou não de cabeça para baixo?
Liberdade(?)
Ah, liberdade!
Que gosto amargo tem,
Parada, como um nó na garganta.
Ah, liberdade!
Eu, que não sou de ninguém,
Sou só mais um Zé no mundo!
E se eu me chamasse Raimundo,
Este seria apenas um plágio,
Mas nunca um grito, de indignação!
Que liberdade, se minhas mãos estão atadas
Se meu silêncio ainda contempla o mundo
Se não há voz, grito ou sussurro
Que tome conta de mim?
Que gosto amargo tem,
Parada, como um nó na garganta.
Ah, liberdade!
Eu, que não sou de ninguém,
Sou só mais um Zé no mundo!
E se eu me chamasse Raimundo,
Este seria apenas um plágio,
Mas nunca um grito, de indignação!
Que liberdade, se minhas mãos estão atadas
Se meu silêncio ainda contempla o mundo
Se não há voz, grito ou sussurro
Que tome conta de mim?
Sunday, September 11, 2005
O morto
Click. Apontou o revólver para minha cabeça, enquanto eu, distraído, estava sentado num banco. O banco, verde com pedaços enferrujados, estava apoiado no meio da grama, colocado ali provavelmente por engano, pois pertencia ao chão áspero de cimento. Mas aquele não era dia nem hora comum. À frente, depois do fim da grama e da faixa estreita do meio-fio, havia uma enorme avenida, começando da praça e seguindo reta em frente, como se fim não tivesse. Mas tinha fim, provavelmente no encontro entre as colinas e o céu, lá onde se formava o horizonte. Nem uma viva alma passava ali por perto, nenhum grupo fazendo cooper, grupo de piquenique ou grupo de amigos conversando. Eu, sentado, nada de posses e apenas um revólver pressionado contra a minha têmpora esquerda. Não estava incomodando, o cano pressionava só de leve a pele, dando espaço para que eu me virasse para ver o atacante. Eu não olhei. Um tiro só nem deve doer muito.
Daí eu lembrei. O sujeito com o revólver ia ficar sem graça e me julgar mal educado caso eu não olhasse. Me ensinaram a ter respeito pelas pessoas ai fiquei imaginando: o cara matar alguém sem nem olhar no olho? Combatendo a preguiça, fui virando minha cabeça devagar. O cano da arma encontrou abrigo na minha testa, como se tivesse sido desenhado para aquela posição.
Havia algo de familiar no rosto. Os traços, um tanto grossos e um sorriso de dentes pontudos, meio insano. Os olhos, profundos, que só se revelavam verdes a um segundo olhar. O rosto, grande, complementando a cabeça arredondada. O cabelo, curto. Era eu, igual, mas diferente. Apertou o gatilho, a cápsula deflagrada adentrou meu pensamento, que se avermelhou. Um golpe seco, o corpo caindo para o lado, caindo sobre o banco para terminar no chão.
Descarreguei as cinco balas restantes do .38 no corpo. Puro capricho. Exagero estético. Eu só queria. Estranho se ver no chão, morto, sem céu, sem nada. Sem alma fugindo pelos olhos. Um pé depois do outro, fui andando para a avenida. O revólver já era inútil, joguei fora.
Daí eu lembrei. O sujeito com o revólver ia ficar sem graça e me julgar mal educado caso eu não olhasse. Me ensinaram a ter respeito pelas pessoas ai fiquei imaginando: o cara matar alguém sem nem olhar no olho? Combatendo a preguiça, fui virando minha cabeça devagar. O cano da arma encontrou abrigo na minha testa, como se tivesse sido desenhado para aquela posição.
Havia algo de familiar no rosto. Os traços, um tanto grossos e um sorriso de dentes pontudos, meio insano. Os olhos, profundos, que só se revelavam verdes a um segundo olhar. O rosto, grande, complementando a cabeça arredondada. O cabelo, curto. Era eu, igual, mas diferente. Apertou o gatilho, a cápsula deflagrada adentrou meu pensamento, que se avermelhou. Um golpe seco, o corpo caindo para o lado, caindo sobre o banco para terminar no chão.
Descarreguei as cinco balas restantes do .38 no corpo. Puro capricho. Exagero estético. Eu só queria. Estranho se ver no chão, morto, sem céu, sem nada. Sem alma fugindo pelos olhos. Um pé depois do outro, fui andando para a avenida. O revólver já era inútil, joguei fora.
Saturday, September 10, 2005
Mudanças
Desde sempre eu tive uma fé enorme na mudança, na capacidade que um ser humano tinha de se transformar em alguma coisa, no compromisso com o futuro que todo mundo tinha e que isto era algo que nos acompanhava como uma tatuagem, ou que corria no sangue, lá na raiz mesmo, no nosso DNA. Anos foram se passando e o choque para a vida adulta começou a desmistificar e destruir praticamente tudo o que eu acreditava. Uma por uma, foram sendo jogadas no lixo várias e várias coisas que eu pensava, minhas crenças, meus ideais e mesmo os meus sonhos. A mudança, último alvo, também acabou por ruir.
Mas acredito num processo de destruição criativa. O que aconteceu em mim foi algo profundamente necessário, algo inevitável, com um momento certo para acontecer. Sou um tanto adepto do caos. A destruição sem sentido não serve de nada. Mas a destruição que acontece para erigir algo em seu lugar, como a queimada que enriquece o solo para dar novas safras, ou para o plantio de novas culturas, tem seu sentido. Se há algo que nesse mundo eu considere sagrado é essa capacidade de morrer e renascer que nós temos.
O mais curioso de tudo é que há algum tempo eu tinha uma boa idéia de que tipo de pessoa, de que tipo de homem eu ia me tornar. Só que a gente nunca sabe como será o futuro, pois a nossa mente no futuro não pode ser pensada no agora. É olhando para trás que a gente vai conseguir um senso de processo, uma idéia do que aconteceu. Um professor meu disse que é difícil prever o futuro pois o paradigma do futuro é diferente daquele do presente. O modo de pensar do presente não é o modo de pensar do futuro. Heis a mudança realmente radical. Olhando para trás entendo que eu pensava diferente ou, na verdade, eu não me conhecia muito bem para me entender o suficiente.
Ter um senso poderoso de identidade é algo que mexe fortemente com as pessoas. Quando a gente percebe que precisa abaixar o volume do mundo externo e nos focarmos em nós mesmos, entendendo como funcionamos, ficamos mais livres. Liberdade é, no fim, um senso de si mesmo inabalável. Um atleta quando faz uma performance grandiosa o faz não só por estar condicionado fisicamente, mas por ter conquistado um senso de consciência. Ele percebe em si mesmo um centro, um ponto fixo, que lhe serve de apoio.
Gosto de pensar que esse centro é como o olho de um furacão. Tudo em volta pode estar girando mas ali, no centro, as coisas continuam tranquilas e sob controle. Tudo pode ser destruido, lançado para fora do seu centro original. Aqueles que reconhecem em si mesmos um centro não serão lançados contra os próprios desejos na tempestade, de um lado para o outro, rodopiando continuamente. Apesar de poderem se relacionar com o ambiente externo, eles não estarão submetidos a todos os efeitos das intempéries pois haverá sempre para onde voltar.
Acho que, no fundo, a gente muda menos do que acredita. A mudança que a gente percebe está muito mais no reconhecimento do que realmente somos. Está no autoconhecimento. Mais importante de tudo é que esse autoconhecimento só acontece com a experiência, com a prática. A experiência, não uma experiência meramente cronológica, pois tem gente que apesar de velho no fundo não aprendeu tanta coisa, nada do gosto, da cor, do cheiro e do sentimento. Tudo o que, no mundo, tem primazia.
Mas acredito num processo de destruição criativa. O que aconteceu em mim foi algo profundamente necessário, algo inevitável, com um momento certo para acontecer. Sou um tanto adepto do caos. A destruição sem sentido não serve de nada. Mas a destruição que acontece para erigir algo em seu lugar, como a queimada que enriquece o solo para dar novas safras, ou para o plantio de novas culturas, tem seu sentido. Se há algo que nesse mundo eu considere sagrado é essa capacidade de morrer e renascer que nós temos.
O mais curioso de tudo é que há algum tempo eu tinha uma boa idéia de que tipo de pessoa, de que tipo de homem eu ia me tornar. Só que a gente nunca sabe como será o futuro, pois a nossa mente no futuro não pode ser pensada no agora. É olhando para trás que a gente vai conseguir um senso de processo, uma idéia do que aconteceu. Um professor meu disse que é difícil prever o futuro pois o paradigma do futuro é diferente daquele do presente. O modo de pensar do presente não é o modo de pensar do futuro. Heis a mudança realmente radical. Olhando para trás entendo que eu pensava diferente ou, na verdade, eu não me conhecia muito bem para me entender o suficiente.
Ter um senso poderoso de identidade é algo que mexe fortemente com as pessoas. Quando a gente percebe que precisa abaixar o volume do mundo externo e nos focarmos em nós mesmos, entendendo como funcionamos, ficamos mais livres. Liberdade é, no fim, um senso de si mesmo inabalável. Um atleta quando faz uma performance grandiosa o faz não só por estar condicionado fisicamente, mas por ter conquistado um senso de consciência. Ele percebe em si mesmo um centro, um ponto fixo, que lhe serve de apoio.
Gosto de pensar que esse centro é como o olho de um furacão. Tudo em volta pode estar girando mas ali, no centro, as coisas continuam tranquilas e sob controle. Tudo pode ser destruido, lançado para fora do seu centro original. Aqueles que reconhecem em si mesmos um centro não serão lançados contra os próprios desejos na tempestade, de um lado para o outro, rodopiando continuamente. Apesar de poderem se relacionar com o ambiente externo, eles não estarão submetidos a todos os efeitos das intempéries pois haverá sempre para onde voltar.
Acho que, no fundo, a gente muda menos do que acredita. A mudança que a gente percebe está muito mais no reconhecimento do que realmente somos. Está no autoconhecimento. Mais importante de tudo é que esse autoconhecimento só acontece com a experiência, com a prática. A experiência, não uma experiência meramente cronológica, pois tem gente que apesar de velho no fundo não aprendeu tanta coisa, nada do gosto, da cor, do cheiro e do sentimento. Tudo o que, no mundo, tem primazia.
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