Monday, September 19, 2005

Ficção entre Vizinhos

Dada a escuridao que cobria o mundo naquele momento, tudo parecia deverasmente simples, como se um olho fechado pudesse desfazer o que um suposto criador tinha feito – também daquela falta de luz primordial. Abriu os olhos, e seu mundo foi feito naquele exato momento, seria o começo de tudo, uma nova vida, diferente de qualquer fantasma de antigamente, de qualquer memória dolorosa, guardada num túmulo, à não só sete palmos de distância, mas sete léguas para dentro da terra, ou sete chaves trancando as correntes.

Abriu a porta da rua decido, dali para adiante, tudo em sua vida seria resolvido de uma forma simples. Olharia sim para a vizinha e em seu sorriso radiante mostraria que ela, Joana, para ele, era o primeiro dia de sol, era como andar sozinho no meio da rua, na contramão, sem carros, na companhia de nada mais que um bando de árvores e suas folhas depositadas no chão. Mas não foi dessa vez, Joana não desceu pelo elevador e não o encontrou na garagem, como fazia todos os dias. De amanhã não passará, pensou o nobre e silencioso Antônio. Uma das fechaduras, ou a distância de sete léguas foi percorrida naquele segundo. O pensamento se perdeu nos cálculos, na velocidade física necessária para percorrer tantas léguas num único segundo.

Pip. Pip. Ouviu o carro apitando e viu sua mão pressionando o pequeno botão esquerdo do controle retangular, com bordas circulares. O que comandava sua mão não era o pensamento, era algo maior, o hábito diário. Pensou por uns segundos se não era apenas um conjunto de hábitos, acumulados ano após ano, talvez momento após momento, talvez naquele exato instante, quando percebeu que não apertara o botão de sempre do controle, o esquerdo. Não, talvez aquilo fosse uma nova manifestação de sua recém descoberta individualidade.

Quando se sentou no assento de pelica de seu carro velho, e sentiu a porta fechando novamente por um comando do cotidiano e todo seu peso etéreo, gostou, como sempre, de ouvir o barulho que, pelo menos por alguns momentos, o lacrava isolado do mundo. Ver as ruas através das janelas limpas era como assistir a um vídeo pornô, a imagem tinha tanta nitidez que parecia real, mas a realidade, por trás de uma tela era mais segura que a realidade em si, era a segurança e a fé da formiga que se imagina ascendendo aos céus, sem perceber que abaixo dela se encontra um vidro, que de tão transparente parece não existir. Talvez fossem em mais números os vidros que envolviam a ele naquela hora do dia.

O poder de um dedo era algo impressionante. Se um sozinho era a chave para a sobrevivência humana, dois, unidos, tinham poderes inimagináveis. Antônio imaginou-se virando a chave que ligava uma bomba atômica com a força de mil sóis, e a resposta do carro foi a explosão de tudo – imaginou um míssil caindo sobre o prédio, explodindo principalmente o apartamento do décimo-segundo andar, no qual se encontrava, sempre dormindo, sua mulher, seus filhos inúteis e sua sogra recém lipo-aspirada. Quando engatou a ré, posicionando o carro de frente para o portão eletrônico, era um sorriso o que naquele momento decorava seu rosto.

Envolvido pelo som monótono e mecânico de um motor envelhecido de portão, a rua se revelava, lentamente, como se um imenso obstáculo se arrastasse lentamente e deixasse o caminho livre, o que deveria ser a grande metáfora da vida. Uma imensa porta se abrindo, uma série de obstáculos se retirando do caminho, para dar passagem a uma nobre autoridade. Ah, se ainda vivesse no tempo dos Reis! Seria ótimo, com uma única condição, que ele Antônio de Marques fosse um dos escolhidos para viver acima de qualquer nobreza, como único e superior mandatário. Mas voltou a sua condição de plebeu imediatamente após ouvir algo que o acordou: o som da madeira rangendo, se abrindo, da porta do elevador, empurrada pela mão alva mas firme de uma jovem, enquanto o pé, aquela parte do corpo que odiava, mas que para ela caia tão bem, envolvido por uma sandália, apontaria e tocaria o chão coberto de rosas, dando vistas para os maravilhosos dedinhos, e acima deles, surgindo aleatoriamente pela fenda da grande saia, pernas e coxas, movidas acima pela linha da cintura, a barriga levemente sobressaltada - pois a imperfeição era, para as mulheres, o que as tornava em alguns instantes perfeitas – e sobre eles os seios, que não imaginava, pois pertenciam ao universo cego do tato, depois o pescoço e o sinuoso encaixe com a caixa toráxica, o que mais gostava nela e acima seu rosto, seus olhos aleatórios, pois a cada dia era uma surpresa, tristonhos, alegres, lascivos, tranqüilos, ressaqueados – tantos olhos que não parecia caber numa só pessoa – e que hoje apontavam para baixo, talvez para contemplar os lábios, esses sim, infinitamente belos e pequenos, destacados por um discreto brilho. Gostava especialmente de seu cabelo curto, que, de forma alguma lhe dava um aspecto andrógino, pelo contrário, ressaltava toda uma feminilidade e o que parecia uma imensa sabedoria de não se enconder por trás de cabelos longos, ou de máscaras de maquiagens. Como tanta simplicidade poderia despertar tanto desejo, e, por sua vez, tanta angústia, pois assim Antônio parecia constantemente se relacionar com o mundo. Cada passo, cada toque no chão era uma badalada enquanto ele, o pobre, se encontrava preso na sala do sino, em penitência – a alegria de um pássaro amarelo que, trancado, só pode tremer diante das antigas experiências mal resolvidas, por não reconhecer o que é ser feliz, que a felicidade é a promessa de que novos dias azuis seguirão as noites tristes e chuvosas, bastando que, para isso, se encare o momento, que é todo o medo.

Enquanto ele torcia para que o portão se abrisse a tempo de não vê-la, pois não ser capaz de cumprir suas próprias expectativas como o novo homem seria algo terrível, o mundo e o tempo conspirava para sua felicidade, e o portão simplesmente parou e voltou, se fechando. Toc. Toc. Toc. Antes de se dar conta, Antônio já sorria para a janela do passageiro, lá onde ela tocava o vidro, fazendo um leve barulho com a ponta dos dedos, e ele abriu a janela e ela, com um sorriso discreto, dourado pela luz de um sol que magicamente parecia ter surgido acima dos dois, pediu carona, pois sabia que ele, Antônio, trabalhava próximo dela e que saiam sempre no mesmo horário, e que – já dentro do carro – se sentia encabulada demais para pedir isso a ele antes.

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