Tuesday, November 15, 2005

O Velho

No amanhecer de seus 80 anos, passados o café da manhã preparado por uma desconhecida - sua antiga e amada enfermeira já estava morta - e o banho, já asseado e pronto para iniciar o dia, às 10 da manhã, ele se lembrou da juventude. Não sabia bem dizer o que era melhor, a clareza com que seu pensamento entendia a realidade, dado pela experiência ou a ingenuidade de acreditar que o mundo estava em sua feitura.

Lembrava o quanto era terrível pensar na solidão enquanto era jovem. Sentia-se anacrônico naquela época, fora do tempo dos outros. Era um tanto inconveniente ser tímido, misterioso e silencioso e assim passava o tempo tentando encobrir os silêncios. Ainda que sonhasse, era um sonho de canário preso na gaiola: tinha o canto, direcionado sempre para outro lugar. Era um pássaro que cantava blues. Hoje entendia, sempre insatisfeitos, olhamos para o devir e a possibilidade.

O passado, esse truque da mente, tão maravilhoso e terrível.

Hoje, na solidão aprendida ao longo dos anos, sentia-se bem, velho dragão da caverna, mas um dragão bonachão, de longos bigodes chineses. Nem que odiasse a companhia de outros, só não os queria procurar. Mas sim, preferia a companhia das coisas simples, pedras que eram pedras, pássaros que cantavam, naturalmente, árvores zefirando sem medo de se quebrar. Vivera sozinho, nunca se casara ou tivera filhos, era um pouco excêntrico, sem dúvida, mas era quem ele devia ser, na saúde ou na doença, até que a morte o separasse das pedras, árvores e pássaros.

(continua...)

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