Saturday, November 26, 2005

Troca de Camisas

Certas amizades se constroem de forma imediata. Tal como um amor que se tem por uma mulher, que entra pelos olhos e toma casa no coração, a amizade, a escolha de um irmão que acontece pela vida, e não pelo sangue, também assim acontece. Num olhar, uma identificação que dispensa as palavras. Os budistas apreciam o silêncio. O amigo se torna aquele com quem se pode partilhar não só os discursos, mas também as horas em que falta a palavra.

Certas horas a gente percebe como somos ainda seres ligados à mitologia. Nosso tempo é mitológico e certos acontecimentos, que se tornam importantes, por vezes são marcados por um ritual. Ontem eu assistia um filme, “Gerônimo” sobre o último líder Apache a resistir, até que se fizesse a linha ferroviária americana. Numa cena, Gerônimo e o Tenente Gatewood, um admirador dos índios, trocam objetos. Gerônimo pede os binóculos do tenente, presente de oficiais subalternos que o admiravam, e Gatewood ganha uma pequena pedra azul, com um coração entalhado. “Essa pedra azul tem um grande valor para mim.” diz o guerreiro Apache.

Na visão de nossa sociedade, ao menos a visão vigente, que tem Ford como deus-ancestral e a produtividade como valor máximo, Gatewood seria chamado de idiota. O binóculo, monetariamente, vale mais que a pedra azul. Mas certas coisas perduram, certas coisas autênticas, indestrutíveis e belas, à parte das mentiras comerciais.

Na semana anterior, quase 200 anos depois da cena descrita no filme, eu revivia algo semelhante. Naquela noite, uma festa de noivado da minha prima, uma pessoa que ultrapassa a palavra “admirável”, eu vestia uma camisa que provavelmente era a minha preferida. Já era fim de festa e sobrava somente eu, André, e o marido da minha prima, Alexandre. Ele vestia uma camisa também de valor para ele, fui descobrir mais tarde que era a blusa de seu casamento.

Posso dizer que no jeito calmo e leve de dizer as coisas, percebi o que é a força de ser bom, que mora num tipo de uma fragilidade que tem uma beleza de poesia, daquelas que falam sobre a vivência de um dia legal. Eu quis escrever outro dia: há força no bem, há fragilidade no mal. há fragilidade no bem, há força no mal.

Sem cálculos, de uma forma muito natural, como tudo que é bacana deve ser, combinamos trocar de camisas. Assim fizemos e vi que a camisa trocada não me servia. Então, naquele momento eu compreendi o que agora teorizo: o ritual, os mitos, não tem valor de troca, nem mesmo carecem de valor de uso, o que conta é o sentido ancestral e perene que ele evoca.

Ali, o que importava era o significado da ação e o valor que cada camisa tinha para seu dono original. No dia seguinte, vi que minha prima não gostou muito da troca, o que veio a se somar na seguinte idéia. Aquela troca só tem sentido se cada um tivesse entregando ao outro algo de valor, o que envolve até mesmo negar-se o apego. A troca vira um voto de confiança.

A vida, antes de dar um sentido para refletir, nos oferece eventos carregados de significados, experiências que tem em si um quê de mitologia e de arquétipo: estamos vivenciando algo que já aconteceu com outras pessoas. Quando coisas assim acontecem, a beleza das coisas se atualiza, como o ritual atualiza o mito.

Segundo Joseph Cambell, mitólogo que me ensinou a profundidade psicológica da mitologia, os mitos não dão um significado à vida. Diferente disso, eles tornarm a experiência de viver em algo mais profundo e belo.

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