A Avenida do Contorno se aproximava, com sua escuridão quebrada de forma sutil pelas luzes amareladas dos postes. Já reconhecia a escola e encontrava uma decisão. Iria pela esquerda, seguindo o curso dos fins de noite. Minha casa, de mármore branco, boas-noites ao porteiro e um resto de música no carro. A esquerda era ainda o futuro e um cruzamento seria mais que o suficiente para mudar tudo. De longe, eu via os carros acelerados pela gravidade da descida, com suas luzes vermelhas pegando fogo pela noite.
Meu caminho era até então sozinho, por uma rua bem iluminada, tão conhecida mas ao mesmo tempo tão misteriosa. Por ela passavam prédios e se moviam vidas de pessoas. Das janelas de suas casas eu passava e o som de meu movimento seria depois anulado pelo hábito. O marulho de automóveis e a saudade serrana de um mar que nunca existira. Eu passava por eles, despercebido, enquanto os anos se agravavam em suas peles e expressões. Minha transitoriedade não tinha importância.
O que significaria um cruzamento na vida deles, nesse momento? Nada. Mais um barulho, mais alto, como uma onda mais furiosa, mais carregada de suas águas. Para mim, o cruzamento era a diferença entre a vida e a morte. Mais carros passavam e eu não tinha intenção alguma de frear, de impedir meu avanço. O cruzamento era a inevitabilidade se aproximando, cada vez mais rápida. Eu seria lançado à curva e meu tempo poderia acabar ali ou ser um pouco mais estendido.
Nenhuma cigana me havia lido o destino. Eu não acreditava no destino. Tinha fé nos fatos. O cruzamento corria em minha direção, enquanto a terra, e a sua partícula menor, a rua, me abandonavam. Independente do que eu especulasse, independente do modelo do carro, da marcha, da velocidade. Independente de todas as disciplinas de vida por mim seguidas até ali, o que existia era o cruzamento. O passado não existia. As memórias eram apenas a ilusão de uma mente e seu desejo infantil de dominar o tempo.
Importava o momento. A plenitude. Aquela rua me lembrava de todas as minhas histórias de morte, de esquecimento. Lembrava-me da humanidade assassinada, da desgraça, do romantismo mórbido. Lembrava-me de todos os meus personagens criados, com suas vidas que nunca duravam mais que duas páginas. Eu era agora o personagem principal e em minhas mãos a decisão de viver ou matar-me.
Não morreria hoje. Entrei na Contorno e virei à esquerda, em direção à casa. O cruzamento, deixado para trás, era uma ilusão engendrada pelo silêncio e pela escuridão. Eu me lembrei e acariciei a memória de um sentimento profundo. Via todas aquelas pessoas que sorriam. Todos aqueles que me olhavam com algum tipo de amor. Eram as pessoas que criavam os momentos mais simples e mais significativos da vida de um homem.
1 comment:
O passado tem essa mania de se mesclar e desaparecer, não? Nos abandonando no presente, sem motivos nem objetivos. :)
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