Sentado ali, desconhecido, ele poderia ser visto como muitas coisas. Via-se ao seu redor um conjunto de mesas, todas circulares, construídas de uma pedra que era a imitação de um mármore, este, por sua vez, entrincheirado pelo que pareciam veias esverdeadas ou cânions aleatórios construídos pelas vielas do tempo. Mas o que importava o mármore, o que importava aquilo que para uma pessoa poderia ser considerado eterno, infinito em sua estabilidade, emparedado. Mesas, mesas que eu seu nascimento eram magma, mesas que depois se solidificaram, que assistiram ao seu redor não aquele tempo que ali se desenhava, mesas que serviram de banquetes a dinossauros, que assistiram, de sua visão milenar, a vida da terra, em ciclo se dissipando, em ciclos ganhando em beleza e desenvolvimento. Mesas que naquele século viram letras derramadas sobre si, pois aquele lugar era uma livraria, e eram tantas as letras, nobres algumas, um tanto chulas outras, talvez um poema ou uma carta, ou palavras multiplicadas numa caricatura de contornos difíceis de definir. Formas, umas contra as outras, umas com as outras, biológicas a princípio mas dadas ao fim como as pessoas, dadas a si mesmas em seus nascimentos. Nem só de palavras viviam os clientes do bar, sim, pois ali, além de livraria, era em si um bar. Olhar para dentro do copo era viver pequenas revoluções, que subiam lá debaixo até que tocassem a camada espessa que impingia um limite, como as camadas de gelo do pólo norte, que eram, à primeira vista, fixas no horizonte mas que escondiam, para baixo, um movimento que não cessava. Ao levantar de copos, o frescor líquido era incorporado, apropriado por sua vez pelos que se sentavam à mesa.
Quem teria dificuldade de contar a própria história quando a realidade se mostrava tão agradável ao ver-se que no interior do que parecia estável, se desenhava a mudança do caminho incessante? Que vida, por mais rotineira que fosse, não ganhava em sua sombra submetida aos caprichos da luz das velas, tanta variedade e imprevisibilidade? Restavam das batalhas vencidas, sempre as armas e partes de armadura, corpos e sangue, para que o escritor, feito antropólogo, construísse com as sombras, com as pistas, uma história carregada com o fardo e a benção da humanidade. Escrever motivado pela vontade de estar em todos os momentos da vida, nos instantes da lágrima arredia que cai sem autorização, nos momentos em que os olhos se fecham para sempre, no espaço entre a última penetração e o gosto do orgasmo, na arte da confecção dos bichos da seda, nos olhos acesos em chamas ou apagados no poço da infelicidade. Tudo, em fim, que dissesse, em seus meandros: “sou um legítimo filho do mundo, existo sem que se entenda o motivo, tenho vida e constância, ainda que de mim seja difícil aprender qualquer coisa”. Transformar os atos indizíveis do mundo em palavras, dando a cada elemento a dignidade que lhes foi furtada.
“Dignidade” era então a primeira palavra do parágrafo, lá onde se iniciavam as obras dos grandes e pequenos homens, além dos médios, sobre os quais, no fundo, se realmente escrevia, pois neles está a universalidade desenhada. Pois neles, médios, se encontra a maior parte da pulsão da vida, pressionada e ferida pelos desejos dos extremos. A própria melancolia era um sentimento médio, ao colocar aquele acometido por ela no meio do caminho, preocupado com as setas, cujas placas apagadas, não mais serviam de referência. O homem, completo e sozinho, obrigado a virar sua própria referência.
André C.
No comments:
Post a Comment